Foi recolhendo os brinquedos espalhados pela casa que a enfermeira obstetra Silvia Victoria Simon Briani, 43 anos, descobriu recentemente a dificuldade da filha Mariana para enxergar. “Meu marido, que estava a poucos metros dela, perguntou à pequena onde deveria guardar o boneco que ele segurava. ‘Mas que boneco?’, respondeu ela”, lembra a mãe. Dois dias depois do episódio, Silvia decidiu levar a menina, de 6 anos, à primeira consulta com o oftalmologista e, depois dos exames, recebeu a notícia que mais temia: “Sua filha está com 8 graus de miopia e 4 de astigmatismo no olho direito, e mais 10 graus de miopia no esquerdo”, disse o especialista.
Quase sem acreditar no diagnóstico, a mãe consultou outro profissional. Ele fez o clássico teste mostrando números na parede, uma vez que a menina já sabia identificá-los bem. E ela errou a maior parte. Foi só nessa hora que a ficha de Silvia caiu: sua filha realmente tinha dificuldade para enxergar.
“A percepção da mãe, do pai ou do cuidador é fundamental porque alterações sérias nos olhos se desenvolvem nos primeiros anos de vida”, diz a professora Célia Nakanami, coordenadora do Núcleo de Oftalmopediatria da Universidade Federal de São Paulo.
No caso de Mariana, os sinais de dificuldade para enxergar incluíam ficar muito perto da televisão e “colar” o rosto no papel do desenho desde que começou a fazer os primeiros rabiscos.
Quanto antes, melhor
Uma pesquisa realizada pela Agência Internacional para a Prevenção da Cegueira, órgão ligado à Organização Mundial da Saúde, mostra que oito em cada dez casos de problemas oculares poderiam ser evitados, caso houvesse um diagnóstico precoce (e isso não se resume apenas ao olhar dos pais...).
Consulta a um especialista é essencial para o diagnóstico correto
Não à toa, o cuidado com a saúde visual dos pequenos deve acontecer desde o nascimento, com o teste do Reflexo Vermelho (TRV), popularmente conhecido como “teste do olhinho” – protocolo nas maternidades do país desde que se tornou um direito garantido por lei em diversos estados (o Rio de Janeiro foi o primeiro a adotar, em 2002). Mas você sabia que esse teste é essencial nas consultas pediátricas nos primeiros três anos do seu filho?
Reforçando a importância dessa prática, o Ministério da Saúde criou um documento chamado Diretrizes de Atenção à Saúde Ocular na Infância: detecção e intervenção precoce para a prevenção de deficiências visuais, para deixar claro que toda criança, nos três primeiros anos de vida, deve ser submetida ao TRV de duas a três vezes ao ano. Segundo o órgão, esse período é o mais crítico do amadurecimento visual, em que o desenvolvimento da visão está a todo vapor. Por isso, a recomendação é que tão logo seja detectada qualquer alteração, a criança deve ser encaminhada para um especialista.
A questão é que poucos profissionais adotam a medida. “Os pediatras recebem treinamento para executá-lo. É um procedimento simples, pois é só aproximar o oftalmoscópio (aparelho que emite luz) dos olhos da criança, procedimento que não dura mais que 45 segundos”, diz o oftalmopediatra Fábio Ejzenbaum, presidente do Grupo de Trabalho em Oftalmologia Pediátrica da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Se o pediatra do seu filho não tem o costume de fazer esse teste, que tal conversar melhor sobre o assunto? Lembre-se de que quando a criança recebe o diagnóstico e trata precocemente um problema ocular os resultados são promissores e podem levar à cura. “Nos primeiros anos de vida, a plasticidade neuronal – capacidade de criar novas conexões entre os neurônios, responsáveis por conduzir as informações – é mais aguçada. Isso favorece que as crianças enxerguem melhor se o tratamento começar logo”, diz a oftalmopediatra Rosana Cunha, da Clínica de Olhos Dr. Moacir Cunha, e diretora da Fundação Oftalmológica Dr. Rubem Cunha (SP).
Evitando o pior
Outro dado da Agência Internacional para a Prevenção da Cegueira mostra que cerca de 33 mil crianças por ano no mundo deixam de enxergar por doenças oculares que podem ser evitadas.
Na lista das causas da cegueira infantil está a retinopatia da prematuridade e o retinoblastoma. A primeira, como o nome diz, acomete alguns prematuros. Ocorre porque os vasos sanguíneos que nutrem a retina não se desenvolvem totalmente, podendo, ainda, parar de crescer ou crescer de maneira anormal, comprometendo a visão. Um dos tratamentos mais utilizados quando o problema é diagnosticado precocemente é a cirurgia a laser, cujos raios barram o crescimento anormal dos vasos.
Já o retinoblastoma é um tipo de câncer que atinge do recém-nascido até crianças de 5 anos, e tem como principal sintoma um reflexo branco na pupila, popularmente conhecido como “reflexo do olho de gato”. O tratamento é cirúrgico ou quimioterápico, com possibilidade de cura se o diagnóstico for precoce, o que também evita a enucleação (retirada do olho), em casos graves.
Ainda pode levar à cegueira infantil a catarata congênita, uma malformação do cristalino (espécie de lente natural do olho), geralmente causada por distúrbios metabólicos ou infecções na gravidez; a toxoplasmose, doença infecciosa provocada por um protozoário encontrado nas fezes de gatos e transmitida para o feto na gestação, e o glaucoma congênito, que ocorre por causa da pressão dentro do olho devido ao acúmulo de líquido.
Segundo pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, feita com 229 crianças com deficiência visual desde o nascimento até os 7 anos, essas três doenças (catarata congênita, toxoplasmose e glaucoma congênito) são as principais causas de cegueira nas crianças mineiras, dados que também refletem a situação no Brasil, segundo a Sociedade Brasileira de Oftalmologia Pediátrica (SBOP). “Tanto a catarata quanto o glaucoma devem ser diagnosticados nos primeiros dois meses de vida para que a cirurgia seja realizada”, diz o presidente da SBOP, Galton Vasconcelos, que também é membro do Grupo de Oftalmologia Pediátrica da SBP.
Isabelly Gandolfo, 6 anos, tem catarata, mas não fez a cirurgia quando era bebê. Embora sua mãe tenha notado um pontinho branco no olho direito dela ainda na maternidade, o teste do olhinho não acusou nada. “Ainda assim, questionei os médicos, que me disseram que era normal”, diz a cabeleireira Bruna Caroline Gandolfo, 29, de Presidente Prudente (SP). Desde então ela passou a viver uma novela no que diz respeito à visão da filha: “Em uma consulta com o meu oftalmologista, porque também uso óculos, comentei sobre o pontinho branco no olho da Isabelly. Para minha surpresa, ele desconfiou de catarata e pediu para investigar”, diz. Bruna conta que até então a pediatra não havia examinado os olhos da filha e nunca tinha falado sobre essa possibilidade. Mas, depois da cisma do especialista, ela decidiu marcar uma consulta com um oftalmopediatra. A essa altura, a menina já estava com quase 1 ano. “Ele não só confirmou a suspeita como também disse que se tivesse feito uma cirurgia nos primeiros meses, o problema poderia ter sido revertido”, diz Bruna. Isabelly usou tampão sobre o olho sadio para forçar o olho com catarata a se alinhar, por cerca de dois anos. Depois disso, ela passou a usar óculos.
No ano passado, porém, veio o maior susto da vida da família: “Isabelly foi dormir bem e acordou sem enxergar nada. Desesperada, ela batia no rosto e gritava que tinha ficado cega”, lembra a mãe. A menina estava com estrabismo e o olho havia virado totalmente. Na consulta médica, para piorar, descobriram que ela estava com catarata também na outra vista. O especialista desconfiou que as horas que Isabelly passava em frente às telas tivessem contribuído para a piora no diagnóstico de estrabismo e o desenvolvimento de miopia – ela tem 3,5 graus em cada olho.
Segundo estudo do Conselho Brasileiro de Oftalmologia, cerca de 20% das crianças em idade escolar têm problemas de visão, sendo que a miopia é o principal deles. “A doença sustenta o título de epidemia do século”, diz o oftalmologista Fabio Adams, do Hospital Infantil Sabará (SP). Segundo pesquisadores, se ela continuar a avançar, até 2050 metade da população sofrerá com o problema.
Por mais luz natural
A luta de Bruna agora é controlar o tempo da filha em frente ao celular e à TV, enquanto aguardam a liberação para cirurgia no sistema público. A exposição às telas por longas horas é apontada como um dos fatores responsáveis pelo agravamento da miopia na infância. Estudo do King’s College publicado no British Journal of Ophthalmology mostrou que uma a cada quatro crianças que ficavam mais tempo frente às telas era míope.
Os pesquisadores ainda buscam uma resposta definitiva para a relação das telas com a doença. Se, por um lado, não há dúvida de que passar horas em frente a elas contribua para os efeitos da fadiga ocular (olho seco, cansaço visual e dor de cabeça), por outro, isso por si só não é recomendação para o uso de óculos. A certeza é que é preciso fazer pausas mais frequentes. É aí que entra a importância de passar bons períodos ao ar livre, conselho de ouro de oftalmopediatras, como Rosana Cunha, que alerta sobre a importância da luz natural como um protetor contra o problema: “Os raios de sol estimulam a produção de dopamina, um neurotransmissor que desempenha papéis importantes no cérebro. Um deles é o do equilíbrio do globo ocular, já que a dopamina regula o crescimento dos olhos”, explica. Na falta dela, os olhos crescem mais alongados, provocando a miopia – que ocorre quando a imagem se forma antes da retina, causando dificuldade para enxergar de longe.
Vários estudos apontam a importância de passar mais tempo ao ar livre. Um deles, feito pela Universidade Nacional Australiana e publicado na revista médica The Lancet, mostra que as crianças de Cingapura – que tem 90% da população adulta míope – passam apenas 30 minutos diários ao ar livre. Já na Austrália, com pouco mais de 10% de crianças com miopia, os pequenos ficam cerca de três horas aproveitando a luz do dia.
É bom saber, porém, que causas genéticas e a anatomia dos olhos também podem provocar a doença. Como sempre, vale lembrar que o equilíbrio é essencial.
Novidade promissora
Mesmo com os progressos na medicina, os óculos ainda são uma ferramenta necessária para manter a saúde ocular do seu filho. (Foto: Getty Images)
A boa notícia é que já há um colírio que barra o avanço acelerado da miopia. É o que mostra uma pesquisa publicada em abril de 2018 na Revista Brasileira de Oftalmologia, com o uso da atropina 0,025%. Para chegar à conclusão, pesquisadores analisaram 60 pacientes do Hospital Geral Universitário e Oftalmocenter Santa Rosa, em Cuiabá (MT), de 6 a 12 anos, sendo que os que receberam o medicamento tiveram uma redução de 65% na progressão da miopia.
O Conselho Regional de Medicina do estado de São Paulo emitiu um parecer comprovando cientificamente a eficácia do colírio em crianças. “Em países como China e Taiwan, onde a miopia atinge cerca de 90% dos adolescentes e jovens, o colírio já é usado há dez anos. No Brasil, a solução com atropina a 0,01% foi liberada para uso com receita médica em 2018”, diz Cunha. Sua função, vale ressaltar, não é regredir ou evitar a miopia, mas impedir seu avanço acelerado.
Mesmo com os progressos na medicina, descobrir que o filho precisa de óculos nem sempre é tranquilo. Pode surgir a culpa por, talvez, não ter notado o problema mais cedo. Depois, a insegurança em convencer a criança a usar óculos, sem medo de ela sofrer bullying. Para essas mães, vale o testemunho de Silvia, mãe da Mariana, da história do início desta reportagem. Com o novo acessório, a felicidade superou qualquer receio: a pequena até notou pequenas sardas no rosto da mãe, nunca vistas antes. “É como se um novo universo tivesse sido descoberto por ela. E a vida da minha filha ficou mais alegre”, diz Silvia.